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ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE MERITOCRACIA


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Em um mundo cada vez mais marcado por disparidades sociais e econômicas, a ascensão de influenciadores, coachs de finanças, líderes políticos e empresários que pregam a divisão simplista entre "vencedores" e "perdedores" revela uma distorção perigosa do conceito de mérito. Nessa narrativa, os chamados "perdedores" são sistematicamente retratados como indivíduos que falharam por falta de esforço, disciplina ou ambição, ignorando-se as estruturas sistêmicas que moldam oportunidades e resultados.


A princípio, a meritocracia possui um apelo estético inegável: a ideia de que o sucesso é fruto exclusivo do trabalho duro e do talento pessoal, sem depender de privilégios ou sorte, parece justa e inspiradora. Afinal, quem não gostaria de acreditar que o mundo opera com base em um sistema equitativo, onde cada um recebe conforme suas capacidades e dedicação? No entanto, quando confrontamos essa lógica com a realidade concreta, percebemos que o discurso meritocrático frequentemente serve para legitimar e naturalizar desigualdades pré-existentes.


No debate público, as polarizações costumam dominar a discussão. De um lado, os devotos do mercado enxergam a meritocracia como um mecanismo justo e igualitário, capaz de nivelar as oportunidades. De outro, setores mais à esquerda radical a veem como um mito perverso, uma ilusão que apenas mascara desigualdades estruturais. Diante desse impasse, proponho um caminho intermediário: o mérito existe, mas não é absoluto — e, em certos contextos, pode pode ser tirânico.


O MÉRITO EXISTE


É possível encontrar exemplos de mérito tanto na base quanto no topo da pirâmide social. Tomemos o caso de alguém nascido em uma família de baixa renda, sem influências ou recursos extras, que estuda em escola pública e consegue ascender economicamente. Onde está o mérito aqui? No esforço e na resiliência de persistir mesmo sem as vantagens disponíveis para outros. Essa pessoa poderia ter desistido, conformando-se com um padrão de vida igual ou inferior ao dos pais — mas não o fez.


Por outro lado, há quem nasça em berço de ouro, com acesso às melhores escolas e redes de contato, e ainda assim precise se esforçar para manter ou ampliar sua posição. Afinal, mesmo com todos os privilégios, ninguém (a menos que compre um diploma ou viva de herança indefinidamente) escapa totalmente da necessidade de algum trabalho. Curiosamente, quanto mais privilégios alguém tem, menos incentivos imediatos existem para se dedicar — mas, ainda assim, há os que aproveitam essas oportunidades e os que as desperdiçam.


O mérito, portanto, não é um mito absoluto, mas também não é um nivelador mágico. Ele opera dentro de condições desiguais.


O MÉRITO NEM SEMPRE É IMPOLUTO


A meritocracia pura pressupõe que todos partem do mesmo ponto — o que é uma ficção. Até entre os mais pobres, há diferenças cruciais: alguns precisam trabalhar desde cedo para ajudar em casa, outros têm a sorte de poder focar apenas nos estudos. Uma política social, como um transferência de renda ou uma bolsa de estudos, pode ser o fator que permite a um jovem estudar em vez de buscar um emprego precário. Nesse caso, o mérito individual é mediado por estruturas externas — um "mérito líquido", descontadas as outras influências.


Da mesma forma, o "empurrãozinho" que uma família rica dá a seus filhos não é tão diferente, em essência, do que um programa governamental pode oferecer a alguém em situação vulnerável. A diferença é que, no primeiro caso, o auxílio é visto como natural; no segundo, como "assistencialismo".


O MÉRITO PODE SER TIRÂNICO


Vale destacar que o conceito de "tirania do mérito" foi cunhado pelo filósofo Michael J. Sandel (2020) em sua obra homônima. Nele, revela-se o aspecto mais perverso da narrativa meritocrática: sua crueldade dissimulada. Afirmações como "todos têm as mesmas 24 horas" ou "basta querer" desconsideram fatores decisivos — como condições materiais, saúde mental, apoio familiar e até o acaso — que determinam quem de fato consegue transformar tempo em produtividade. O problema se agrava quando exceções — como a história inspiradora de alguém que "venceu contra todas as odds" — são instrumentalizadas para mascarar a rigidez do sistema, como se a mobilidade social fosse uma questão de esforço individual e os menos afortunados fossem apenas "incapazes" ou "desleixados".




Ao se tornar um dogma, a meritocracia não só naturaliza privilégios, mas também patologiza a pobreza. Se o sucesso é invariavelmente atribuído ao mérito e o fracasso, à incompetência pessoal, qualquer questionamento sobre desigualdade estrutural é reduzido a um "discurso de vitimismo". Assim, a meritocracia deixa de ser um ideal de justiça e se transforma em um mecanismo de culpabilização.


Reconhecer o mérito não é ignorar as desigualdades que o cercam. Uma sociedade justa valoriza o esforço pessoal, mas não o vê como o único fator decisivo. O grande desafio é criar um sistema que de fato expanda oportunidades — sem tratar a meritocracia como solução mágica, nem desprezá-la como mera fantasia.



Referência

SANDEL, Michael J. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?. Editora José Olympio, 2020.

O link indicado foi acessado ​​em 1 de maio de 2025.

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