O QUE PENSA MARCOS LISBOA II: O "PAÍS DA MEIA ENTRADA"
- Jailson Rodrigues
- 8 de mar.
- 4 min de leitura
A noção de um “país da meia entrada”, termo cunhado por Marcos Lisboa em colaboração com Zeina Latif no artigo Democracy and Growth in Brazil, serve tanto para criticar a Lei específica quanto para ilustrar, de forma metafórica, a dinâmica do Estado brasileiro na formulação de políticas públicas e no processo de desenvolvimento econômico. Esse conceito expõe as distorções estruturais que caracterizam a relação entre o setor público e os grupos de interesse. Ao evidenciar como políticas são frequentemente moldadas por pressões corporativas e benefícios setoriais, o termo sintetiza de maneira contundente os desafios enfrentados pelo país na busca por um crescimento econômico mais sustentado e inclusivo.
A "Lei da Meia Entrada" estabelece, por exemplo, que estudantes, idosos com 60 anos ou mais e, mais recentemente, outras categorias específicas, tenham direito a pagar metade do valor do ingresso em eventos culturais, esportivos e de lazer. Embora essa medida tenha um objetivo social nobre — ampliar o acesso a bens culturais e de entretenimento para grupos considerados prioritários —, ela traz consigo um problema estrutural: o custo desse benefício é transferido para outros indivíduos, que acabam pagando preços mais altos para compensar a diferença. Esse mecanismo, aparentemente simples, serve como um ponto de partida para uma análise mais profunda sobre a dinâmica das políticas públicas no Brasil.
Como destacam Marcos Lisboa e Zeina Latif, o princípio da "meia entrada" vai além do contexto cultural e esportivo, tornando-se uma metáfora poderosa para entender como o Estado brasileiro opera em diversas áreas. Eles argumentam que, de maneira análoga à Lei da Meia Entrada, o governo frequentemente adota medidas que beneficiam setores ineficientes e grupos organizados, muitas vezes em detrimento do interesse coletivo. Isso ocorre por meio de políticas protecionistas, regras de conteúdo nacional, subsídios indiscriminados e outras intervenções que distorcem o mercado e criam incentivos negativos. Essas práticas, muitas vezes justificadas por discursos de proteção social ou desenvolvimento econômico, acabam privilegiando minorias organizadas e politicamente influentes, enquanto a maioria da sociedade arca com os custos.
Nesse sentido, a "meia entrada" concedida a esses grupos privilegiados é, na realidade, subsidiada pela "entrada cheia" paga pelo conjunto da população. Esse custo pode se manifestar de forma direta, como o aumento de impostos para cobrir subsídios e incentivos fiscais, ou de forma indireta, por meio de preços mais elevados, menor eficiência econômica e uma redução do bem-estar social. Lisboa e Latif enfatizam que essa dinâmica é resultado de uma combinação de fatores, incluindo o oportunismo político, a má gestão dos recursos públicos e a captura do Estado por grupos de interesse.
Essa configuração político-econômica gera distorções profundas e consequências graves para a economia brasileira como um todo. Ao privilegiar setores e grupos específicos em detrimento do interesse coletivo, da transparência e de uma avaliação rigorosa de impacto, o Estado acaba perpetuando ineficiências, desincentivando a competitividade e comprometendo o crescimento econômico de longo prazo. Marcos Lisboa destaca que essa prática não é um fenômeno recente, mas sim um padrão recorrente na história econômica do Brasil, onde políticas já comprovadamente nocivas são frequentemente revisitadas e reimplementadas, muitas vezes sob novas roupagens ou justificativas. Ele observa que, enquanto em outros países a concessão de privilégios e o tratamento diferenciado são exceções, no Brasil essas práticas fazem parte da própria regra. A escolha de "vencedores" — sejam setores, empresas ou grupos — é um aspecto central da política de desenvolvimento brasileira desde a era Vargas.
Como será explorado na parte IV desta série, a persistência de uma estrutura econômica baseada na “república da meia entrada” — onde o privilégio de poucos se sobrepõe ao bem-estar da maioria — tem gerado frutos amargos para o país. Entre eles, destacam-se a insolvência de diversos estados, crises políticas e institucionais recorrentes, a estagnação da produtividade e o baixo crescimento econômico. Esses problemas não são meramente conjunturais, mas sim o resultado acumulado de décadas de má alocação de recursos, falta de reformas estruturais e a incapacidade de enfrentar desafios antigos e persistentes. A estagnação da produtividade, por exemplo, é um reflexo direto de um ambiente econômico que premia a ineficiência e desincentiva a inovação, enquanto a crise fiscal dos estados evidencia os limites de um modelo que transfere custos para a sociedade sem gerar retornos proporcionalmente benéficos.
Em síntese, o conceito do “país da meia entrada” oferece uma lente crítica para entender como o Estado brasileiro tem falhado em promover um desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável. Ao priorizar interesses específicos em detrimento do interesse coletivo, o país acaba pagando um preço alto, tanto em termos de eficiência econômica quanto de equidade social. A superação desse modelo exige não apenas a revisão das políticas atuais, mas também uma mudança profunda na forma como o Estado interage com a economia e a sociedade. Isso implica em maior transparência, accountability e uma avaliação rigorosa do impacto das políticas públicas, além da adoção de reformas estruturais que promovam a competitividade, a inovação e a justiça social. Somente assim será possível romper com o ciclo vicioso de privilégios e ineficiências que tem caracterizado o desenvolvimento econômico do Brasil.
Sugestão de leituras:
Marcos Lisboa: "No Brasil, o privilégio é a norma" (Revista Época);
Marcos Lisboa: o ajuste fiscal e o problema da meia-entrada (Brazil Journal)
Sugestão de vídeos:
“Por que o Brasil é um país tão vulnerável a interesses pessoais?”, Marcos Lisboa analisa (Band Jornalismo);
Marcos Lisboa | A sociedade civil como agente da estagnação brasileira (Virtù News);
Marcos Lisboa: protecionismo (Gabriel Medeiros);
Brasil sacrifica produtividade ao proteger grupos ineficientes | Marcos Lisboa (Canal UM BRASIL).
Os links indicados foram acessados em 8 de março de 2025.
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